sábado, novembro 19, 2016

«Afrika-korps» da RDA comunista. Mitos e realidade

Em março de 1980, a capa da revista alemã «Der Spiegel» publicou a foto dos quatro militares da República Democrática Alemã (RDA), junto à uma faixa ambientada ao estilo de Wehrmacht com a inscrição: «Honeckers Afrika-korps». A revista falava dos 2.720 assessores alemães em África: 1.000 em Angola, 600 em Moçambique, 400 em Líbia e 300 na Etiópia.
Anteriormente, em 29 de maio de 1978, a informação parecida foi publicada no semanário «Die Zeit» com o título «Hoffmanns Aafrikakorps»; em junho de 1978 «Bayernkurier» publica o artigo «Honecker rotte Afrika-korps» e em 18 de novembro de 1979 «New York Times» falava sobre «East German Afrika-korps».

Os números

Em agosto de 1978 a «Le Figaro» parisiense falava do envio para Etiópia de mais de 2.000 militares da RDA, sob o comando dos generais soviéticos. A «Tagesspiegel» alemã, em dezembro de 1978 escreveu, citando o chefe do governo regional da Baviera, Franz Josef Strauss, que apenas em Angola estão estacionados cerca de 5.000 homens do “exército da RDA”, principalmente as “unidades da elite, nomeadamente os pára-quedistas», 2.000 dos quais eram usados na «atual ofensiva». Em fevereiro de 1979 «Tagesspiegel» informou sobre a movimentação de um regimento do exército da RDA de Etiópia para Angola.
O militar angolano (?) com equipamento da RDA
Em fevereiro de 1980 a «Die Welt» avaliava o número total dos “assessores militares da RDA” em África em «cerca de 30.000» homens. Em dezembro de 1979 o líder do grupo parlamentar do CDU/CSU em Bundestag, na oposição, Rainer Barzel, escreveu nas páginas de «Welt am Sonntag»: «o chanceler federal Helmut Schmidt não tem mais o direito de permanecer em silêncio sobre o rastro de sangue da RDA».
No filme popular da época, «The Wild Geese» (1977), abrilhantado pelo Richard Burton, Roger Moore, Richard Harris e Hardy Krüger existe a sequência em que os mercenários europeus atacam, algures em África, a estação de controlo aéreo, liquidando um oficial do Exército Nacional Popular (NVA), facilmente identificável pelo seu boné típico. No campo atacado, além dos soldados africanos e cubanos, também são visíveis dois oficiais da RDA. Mas até que ponto o NVA realmente estava metido em África?

Os pedidos dos camaradas

Os governos africanos por várias vezes pediram a RDA fornecer o seu pessoal militar, principalmente os pilotos. Os pedidos eran formulados em 1979-1980, por exemplo, pelo presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda e pelo seu ministro da defesa, Alexander Grey Zulu. Os zambianos queriam que a força aérea da RDA defendesse o espaço aéreo do país. O ministro da defesa da RDA, general Heinz Hoffmann (1960-1985), recusou imediatamente a proposta, a classificando de «impraticável». Em 1980, os zambianos voltaram a pedir os assessores militares, mas as negociações com Hoffman “ainda não levaram à nenhuma decisão”, – se queixava Kaunda na carta ao secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha, Erich Honecker.
O general Heinz Hoffman em 1965
Quase nos mesmos termos, em 1979, o chefe do ZAPU, zimbabueano Joshua Nkomo, durante a sua visita a RDA solicitou o envio dos militares do NVA a Zâmbia para treinar as seus milícias. Hoffman recusou o convite novamente, por ser «politicamente inoportuno». Na realidade, as recusas da liderança da política e militar da RDA em atender os pedidos semelhantes se encaixava na sua política de passividade militar, não pretendendo se envolver nos conflitos e guerras em África.

A RDA também não pretendia manchar a sua reputação internacional, queria evitar os riscos militares no estrangeiro, recusando-se a participar nas aventuras semelhantes às dos camaradas soviéticos ou cubanos. Não sem algumas excepções pontuais.
Os oficiais do Volksmarine
Em 1964, dois oficiais do NVA foram enviados, na qualidade dos assessores, a Tanzânia, por volta de 1970 ao mesmo país recebeu como assessores os 15 oficiais e sub-oficiais da Volksmarine (a marinha da guerra da RDA). As missões limitadas, de curta duração, de assessores e “especialistas” foram realizadas, por exemplo, em Angola. O maior número de oficiais e pilotos de aviação de transporte se encontrava em Moçambique e na Etiópia.

A presença militar da RDA em Moçambique
A delegação da RDA em Moçambique em 1981
Um dos principais beneficiários da ajuda militar da RDA em África era Moçambique, principalmente devido a sua guerra civil de 1977-1992. Embora a RDA fornecia os armamentos e equipamentos ao FRELIMO ainda no decorrer da luta anticolonial.   
A entrega da ajuda humanitária da RDA ao Moçambique
Em dezembro de 1984, aparentemente numa emboscada da RENAMO, morreram oito técnicos agrícolas da RDA, quando se dirigiam a uma horta / machamba coletiva, uma espécie do kolkhoze local. Em resposta, RDA, enviou ao país alguns grupos de oficiais seniores e até dois generais do NVA, na qualidade dos assessores do Estado-Maior General, das diversas unidades e nos comandos menores. A sua tarefa consistia em melhorar a segurança dos cerca de 700 cooperantes da RDA no país, aumentando também a capacidade combativa do exército moçambicano (FPLM).  
O embaixador da RDA em Moçambique na cidade de Tete em 1981
Desde o fim de 1985 em Moçambique residiam permanentemente três oficiais do NVA – assessores das FPLM, entre 1986 e 1990 o país usufruía dos serviços da aviação de transporte da força aérea da RDA, cujos aviões se baseavam em Maputo, garantindo as necessidades dos cooperantes, devendo também assegurar a sua eventual evacuação.
Heinz Kessler em 1968
Em 1985-86, o governo moçambicano também manifestava a RDA o desejo de receber os instrutores e «assessores» do NVA. Em junho de 1986, o general Heinz Kessler, o novo ministro da defesa da RDA, informou os Honecker e Egon Krenz que recusou este pedido por ser “inconveniente” por “razões políticas”. Em janeiro de 1986, o próprio Krenz recusou a ideia de envio de instrutores do NVA ao Moçambique, por ser “inconveniente”.

A presença militar da RDA na Etiópia

Em fevereiro de 1977, o poder no país foi tomado pelos militares, chefiados pelo coronel Mengistu Haile Mariam. O novo poder, engajado em guerra contra Somália e futura Eritreia, declarava a lealdade ao Moscovo, Havana e Berlim Oriental. Mengistu enviava os apelos dramáticos de ajuda militar às embaixadas da URSS, Iémen do Sul, Cuba e RDA: “O povo da Etiópia se sente isolado e abandonado, Camarada!” – escreveu ele literalmente, num telegrama ao Honecker em agosto de 1977.
An-26 da RDA em África, década de 1980
Já em outubro de 1977, a URSS enviou ao país cerca de 150 oficiais, incluindo quatro generais, em setembro de 1977 vieram os primeiros 200 cubanos, desde o dezembro do mesmo ano Havana aumentou o seu contingente militar, que chegou aos 16.000 – 18.000 efetivos. A RDA enviou as armas, equipamentos e aviação de transporte – mas não as tropas de combate.

Entre 1984 e 1988, primeiro quatro e depois cinco aviões de transporte da RDA se baseavam no Corno de África, usados para combater as consequências da seca catastrófica de 1984. Desde novembro do mesmo ano RDA usava para o efeito dois aparelhos da sua força aérea e dois, pertencentes à companhia de aviação civil Interflug. A operação secreta envolveu 41 pessoas, 22 oficiais e sub-oficiais do NVA e 19 funcionários da Interflug.
Mais um An-26 da RDA em África, década de 1980
O “segredo” era a palavra de ordem. Os An-26 da força aérea foram pintados, durante uma noite, às cores civis, recebendo a identificação civil e viram os seus equipamentos militares desmontados. Ao pessoal foram entregues os documentos civis de identificação. Os símbolos militares foram apagadas até da loiça e dos equipamentos auxiliares, o pessoal não usava nenhum fardamento militar. As testemunhas contam que as marcas de identificação foram retiradas até da roupa interior, nada deveria mostrar a sua pertença ao exército da RDA. A razão do sigilo absoluto estava enraizado nem tanto nos possíveis perigos na viagem à Etiópia, como na prática usual da RDA na abordagem de questões militares.

Quase simultaneamente com as aeronaves da RDA, para Etiópia vieram três Transall C-160 da Força Aérea de Bundeswehr – oficialmente e sem nenhum segredo. Os C-160 baseiam-se em Assab, na atual Etiópia, depois em Dire Dawa e eram usados do mesmo jeito dos aviões da RDA. Assim, podemos dizer que Etiópia beneficiou de uma incomum cooperação alemã-alemã.

Os An-26 transportavam os alimentos, material médico e vestuário. A operação continuou até outubro de 1985, os aviões da RDA também tomaram a parte das operações etíopes controversas de reassentamento populacional imposto. Ao pedido do governo etíope os aviões do NVA voltaram em abril de 1986, desta vez na qualidade da “força-tarefa do NVA da RDA”. O pessoal alemão foi apresentado oficialmente como pertencente à Força Aérea da RDA. Dois An-26 foram colocados na capital Addis Abeba.
Mais militares africanos com os fardamentos e equipamentos da RDA
A terceira operação de transporte aéreo começou em junho de 1987. Um An-26 foi colocado no aeroporto de Addis Abeba. A sua tarefa era assegurar a logística e prestação de serviços aos profissionais e equipas médicas da RDA. Além disso, em 1987-1988 um número limitado de agentes do NVA estava envolvido na proteção de hospital da campanha da RDA em Al-Matamma.

Para garantir a sobrevivência do regime, Honecker, aprovou pessoalmente em 1988 e novamente em 1989 o envio ao país dos grandes fornecimentos de armamento, incluindo os blindados. Ações que não impediram a queda do Mengistu Haile Mariam, derrubado em 1991. Um dos documentos internos da RDA, já em 1977 classificava o regime comunista da Etiópia como um “poço sem fundo”.

A contra-informação consciente?
Os militares angolanos com fardamentos e equipamentos da RDA
Em setembro de 1978, o departamento 210 do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Federal da Alemanha, escreveu sobre a presença militar da RDA na África o seguinte: “A política de ações de intervenção da RDA está bastante aquém da atividade militar maciça da Cuba”. A embaixada da RFA na África do Sul nas suas comunicações ao Bona em novembro de 1978 classificou a informação sobre a presença militar da RDA em Angola de “rumores”.

Em aberto permanece a questão da origem destas informações. Os artigos da época citavam os “especialistas em segurança” ou “analistas ocidentais”. Acredita-se que as mesmas serviam aos interesses da África do Sul. A informação sobre milhares de militares da RDA nas suas fronteiras trazia os benefícios tangíveis ao governo de Pretória: confirmando a luta no sul de África como a parte do conflito entre Leste e Ocidente, posicionando-se como um aliado natural do Ocidente.

Como tal, a ativação na RFA da imagem do velho inimigo – a RDA poderia ser a tática bastante inteligente, do ponto de vista de sul-africano. A revista «Der Spiegel» suponha em 1980 que os serviços de inteligência sul-africanos poderiam executar a tarefa de propaganda e das RP com bastante facilidade. Após uma intensa pesquisa nos arquivos, hoje é possível chegar à uma conclusão: o “corpo africano de Honecker”, existia, grosso modo, na mente dos jornalistas, políticos e agentes dos serviços secretos (fonte).

Bónus

Procurado pelo coronel Gaddafi para pedir o envio dos militares do NVA a Líbia, Honecker hesitou em fornecer mais do que a tecnologia militar. Honecker, no entanto, consentiu a formação dos cerca de setecentos militares líbios nas academias da RDA, cobrando a quantia módica de 27,2 milhões de dólares. No final, vieram apenas 283 formandos. O maior contingente dos futuros oficiais veio a RDA do Vietname, o segundo maior – da Síria. No caso da Síria, a RDA foi ainda preparada para renunciar à instrução política obrigatória: “Aos quadros militares sírios ... não é exigida a formação sócio-científica”.
José Eduardo dos Santos na RDA, década de 1980
Apenas a Escola dos Oficiais “Otto Winzer”, criada em Prora em 1981, possuía mais de 500 funcionários para graduar os militares e os “militantes” de 16 países e organizações amigáveis. A soma total das despesas da RDA nesta e nas três outras escolas militares, entre 1973 e até o fim da RDA em 1990 ascendeu aos 145 milhões de marcos (cerca de 34,6 milhões de dólares); apenas a Líbia e a Síria pagavam pela formação dos seus quadros, outros países, como Vietname, cobriam unicamente as despesas de viagem dos cadetes (tagesspiegel.de). 

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