domingo, março 20, 2016

“Under the Sun”: o país da falsidade total

O realizador russo, nascido na Ucrânia, Vitaly Mansky, é conhecido pelas suas obras documentalistas de grande qualidade. Mas o seu último filme,Under the Sun”, pode se tornar a verdadeira obra-prima: é a história da Zin Mi, a estudante de 8 anos da Coreia do Norte, filmada em 2014 na última ditadura comunista do mundo.

No fim, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do RPDC não gostou do resultado e emitiu uma nota à sua congénere russa, exigindo a proibição de exibição do filme. Por sua vez, Vitaly Mansky sempre se interessou pela Coreia do Norte, pois “sempre ficava inquieto com a questão de como era possível rebaixar um homem, como era possível destruir os seus princípios básicos, porque a pessoa está disposta a obedecer”.
Em 2013 o realizador teve a primeira viagem ao país, durante a qual escolheu uma menina ao papel principal: foi levado à uma escola-modelo, onde no gabinete do diretor foram lhe apresentadas cinco meninas e lhe disseram: “você tem 5 minutos, pode as conhecer e escolher de quem gosta”. O guião do filme era sobre a menina, que entra na União das crianças (pioneiros / continuadores), onde recebe a tarefa muitíssimo importante – participar na maior festa do mundo. Ela e os seus camaradinhas se preparam e no fim se transformam numa dos milhares de pessoas que formam o maior quadro vivo do mundo [dos queridos líderes] que personifica a felicidade suprema. 

As personagens da feira estalinista

O realizador escolheu Zin Mi, pois a menina lhe disse que o seu pai é jornalista (Mansky pensou: “ótimo, através dele posso chegar algures”); e a mãe era funcionária de cantina numa fábrica (realizador: “melhor ainda, as pessoas comem, haverá alguma fatura humana”). A menina também contou que a família vivia no apartamento T0 com avôs e avós...
Quando a equipa veio às filmagens, “descobriu-se” que “afinal”, o pai é em engenheiro numa fábrica-modelo de ramo têxtil; a mãe “se transformou” numa funcionária de uma fábrica-modelo de fabricação de leite de soja; família vivia num dos mais luxuosos prédios da cidade. Embora o linóleo, com imitação de parqué, estava estendido por cima de chão de cimento, com as pontas que não chegavam à parede; as mobílias eram recém-trazidas; os quadros nas paredes recém-colocados; o guarda-fato estava vazio; o banheiro nunca foi usado, nem tinha água; a energia elétrica fornecida durante as filmagens: em geral, parecia que apartamento estava num prédio inabitável, onde elevador foi ligado apenas para as filmagens. Mas pelo menos, as três entradas do prédio estavam abertas. O edifício em frente, que o realizador consegui rodear, quando iludiu os seus “acompanhantes” norte-coreanos – não tinha a entrada! Embora todas as tardes lá se iluminavam as janelas, todas com as lâmpadas iguais. Ou seja, o prédio de habitação era um fake, apenas a caixa de betão, sem entradas, sem moradores...    
Os "acompanhantes" estavam acompanhar as filmagens de perto...
O pai e a mãe da Zin Mi pareciam serem os seus pais reais, pelo menos tinham o álbum de família. Mas as fotos eram feitas num fundo falso, propositadamente, estas imagens foram mostradas no início do filme.
Mansky classifica Pyongyang como: “uma feira absolutamente estalinista e todos os seus moradores fazem parte da exposição”. Por exemplo, nos gramados / relvados às 6h00 de manha ou às tardes, as pessoas, com as pinças nas mãos e dobrados até o chão apanham uns lixos minúsculos. Durante as filmagens na fábrica-modelo, onde alegadamente trabalha o pai, o realizador foi até casa de banho e errou na porta. Quando a abriu, viu umas 150 mulheres nuas à tomarem o duche. Numa outra ocasião espreitou da janela e viu que dentro da fábrica existiam as barracas de habitação, ou seja, os trabalhadores viviam dentro da fábrica e então, a imagem deles [mostrada ao realizador], à entrarem na fábrica de manha era outro fake monumental.

O “1984” real

O pior de tudo, é que nem se percebe o significado prático de falsificar a realidade. Em Pyongyang praticamente não há estrangeiros e os que há, andam nos itinerários pré-defenidos. Desde o fim de outubro até o início de abril o país se fecha aos estrangeiros: os prédios são aquecidos com o carvão mineral ou com a lenha e a imagem das chaminés à saírem das janelas não é considerada agradável [pelo regime]. 

Embora o realizador tinha o direito de visitar o país por três vezes, filmando durante 75 dias, após os primeiros 45 dias de filmagens, a sua equipa nunca mais recebeu a permissão de lá voltar. Os camaradas norte-coreanos não gostaram que o realizador filmava os exteriores do seu hotel, através das cortinas no quarto. Acordado pelo barulho às 6h00 de manha, ele ficou estupefacto com a imagem de uma praça absolutamente cheia de gente, sentada de cócoras, no chão, à comer algo, à dormir – usados para ensaiar um comício popular qualquer. Três ou quatro minutos após o início desta filmagem clandestina, na porta do realizador bateram os seus “acompanhantes”, que viviam nos quartos de ambos os lados, com aviso: “saia da janela, será que você quer nunca mais cá voltar?”  
Tudo o que foi filmado não oficialmente – as pessoas à empurrar o autocarro, as crianças junto aos caixotes de lixo, a fila para “comprar” algo, “pagando” com os talões de racionamento – tudo isso foi filmado através de alguma abertura, por detrás das cortinas...

Para que os estrangeiros não andem livremente em Pyongyang, são retirados os seus passaportes. Nos supermercados tudo é muito barato, mas aos estrangeiros não é permitido possuírem a moeda local. Quando o realizador arranjou algum dinheiro norte-coreano e queria comprar uns cadernos engraçados, foi lhe dito: “você não os pode comprar”. Numa outra ocasião, na companhia dos “acompanhantes”, entrando numa mercearia, Mansky viu as prateleiras cheias de pacotes de sumo de tomate. Ele perguntou: “quanto custa o sumo de tomate”. O “acompanhante” deu a resposta habitual: “Depois lhe contaremos”. Mansky: “Não, perguntem agora”. A vendedora responde, o “acompanhante” traduz algo como: “Os preços ainda não foram afixados”. Mansky: “Muito bem. Quanto custou este sumo na semana passada?”. Tradução: “O sumo de tomate não se vende”. Mansky: “Depois eu percebi: vendedores, visitantes, bens – não é uma loja real, é um salão de exposições”.  
No filme há imagens quando toda a família: mãe, pai e menina se juntam em redor de uma mesa baixinha, totalmente preenchida com os pratos de comida. Na presença da equipa de filmagens essa comida foi trazida, embalada em plástico, era despacotada e colocada na mesa. A família tinha um medo real de a tocar. Os “acompanhantes” diziam: vocês comem, comem. Família apenas olhava: podemos mesmo?
O homem na imagem é pai do Zin Mi, alegadamente o engenheiro. No filme este episódio foi filmado 2 vezes: da primeira vez a operária informa o “engenheiro” que o plano é ultrapassado em 150%. De seguida o “acompanhante” ordena à moderar o discurso.
Em Pyongyang [até 2014] o estrangeiro não poderia entrar no metro sem os “acompanhantes” e só poderia visitar duas estações [Yŏnggwang e Puhŭng]. A equipa do Mansky não conseguiu terminar as filmagens e pediu visitar outras estações. Em resposta recebe um “não” categórico. Mas oferecem aos cineastas a possibilidade de voltarem ao ponto de partida e filmar novamente. O realizador explica: desta maneira as pessoas na carruagem serão diferentes. Os “acompanhantes” dizem que isso não é um problema e comandam os passageiros: “Levantem-se e passem para outro lado”. E toda a carruagem se levanta, passa para outro lado e entra na carruagem que vai no sentido inverso. Em silêncio e sem a menor discussão...

A imprensa norte-coreana  

Na Correia do Norte é proibido gravar os programas televisivos, mas a equipa de Mansky trouxe um disco duro e gravava estes programas 24/24 horas. O país possui dois canais, sem nenhuma publicidade, no seu lugar está a informação sobre os grandes líderes; o conteúdo dos programas da TV são ou os programas que exortam os líderes ou as leituras do juche

No país são publicados três jornais diários. São proibidos de serem levados fora do país ou serem usados como papel. Os três são feitos ao mesmo padrão: 1ª página  — imagem do líder do tamanho da página inteira e um pequeno texto. página 4 fotos do líder com algo à acompanhar e pequenos textos. 3ª página 8 imagens do líder nas fotos conjuntas. 4ª página são fotos das façanhas do regime e num cantinho, os acontecimentos mundiais —  pequenos textos com as pequenas fotos à preto-e-branco das greves, catástrofes, quedas dos aviões. Todos os dias se formam as filas nos quiosques para comprar estes jornais.

Amor apenas platónico

Em nenhum filme de toda a história cinematográfica da Coreia do Norte ouve sequer um beijo. Os heróis do Mansky, pai e mãe da Zin Mi, também nunca mostraram os afetos. Eles estavam concentrados numa importante tarefa estatal: participavam no filme.

Quem é culpado?
Os norte-coreanos sabem que vivem mal, mas são seguros que isso acontece apenas porque os EUA são contra eles... Quando a equipa do Mansky filmava o episódio da filiação das crianças nos pioneiros, os “acompanhantes” lhes mostravam as crianças de 7-8 anos em fardamento militar e diziam: «Os seus pais morreram na guerra, são filhos da guerra». Embora a última guerra em que participou o país acabou 60 anos atrás! Mas os coreanos estão absolutamente convencidos: algures, decorre a guerra, os militares norte-coreanos lutam nela, existe a linha da frente, os militares morrem, o líder toma conta dos seus filhos...

Agentes secretos quase...

Todos os dias, a equipa do Mansky era obrigada entregar todo o material filmado aos “acompanhantes” norte-coreanos [para verificação]. O cameraman do Mansky, todos os dias se queixava das dores de estômago, ia à casa de banho, onde copiava o material filmado à carta de memória adicional. 24/24 horas a equipa estava sendo vigiada. Tinham que se comunicar aos sinais ou falando fora dos quartos, barricar a entrada dos quartos para impedir o acesso indesejado dos “acompanhantes”.
Durante muito tempo os norte-coreanos não deixavam Mansky regressar ao país, até que perceberam que o filme será demonstrado no festival “Noites Negras” de Tallinn (Estónia). Naquele momento propuseram voltar e terminar as filmagens. O Ministério russo dos Negócios Estrangeiros, após receber a nota dos norte-coreanos pediu ser retirado como um dos patrocinadores do filme. O que não mudará absolutamente nada, pois o filme já recebeu os convites aos cerca de 30 principais festivais do cinema mundiais. Alguns países já o compraram para exibição, o filme irá se estrear nos cinemas da Europa. De momento decorrem as negociações para a exibição do “Under the Sun” nos EUA...   

O grande final
No final do filme a Zin Mi chora, depois pode-se ouvir a voz de Mansky e a menina começa declamar o juramento de fidelidade ao líder. Mansky explica que Zin Mi chorou porque sentiu uma grande responsabilidade e pensou que não correspondeu às expetativas. Ela foi escolhida. Escolhida para mostrar a grandeza, o poder e a devoção ao país, e quando lhe fazem uma pergunta, que ela responde, de uma maneira que ela própria julga insuficientemente boa, chora, atrapalhada. Ela diz: “Eu não consigo perceber se fiz tudo para ser grata ao grande líder”. E da sensação de que não fez tudo, começa a chorar...
Fonte e fotos (YouTube; arquivo pessoal do realizador):
http://newtimes.ru/articles/detail/105543

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